"A doce Vida"

Fazia eu seis anos no 7 de fevereiro de 1960, ano que ao seu fim, Dona Natividade lá no alto do Bairro Haidée concluiria minha apresentação ao mundo das palavras, até o meu nome eu já garatujava, me deixando assim alfabetizado. Como também, já pronto para o início de minha vida estudantil no Grupo Escolar Guido Marlieré no ano seguinte. Tudo isto, aqui em Cataguases é claro. Pois não é que dois dias antes de meu aniversário estreava lá na Itália “La Dolce Vita”. Isto há cinqüenta anos. Não, não me lembrei do fato. O que me fez viajar pela data foi um ótimo artigo de Mònica Faro, publicado em um jornalão paulista, no qual ela trafega pela Roma de hoje relembrando do filme. Meu contato com Felinni aconteceria bem mais tarde, lá no Cine Machado - um dos cinemas aqui dá terrinha - nestes tempos a turma do “Anunciador”, como herdeiros de Humberto Mauro, tentavam sua ousadia estético- cinematográfica. Foi lá no cinema do Seu Nelo que diante dos meus olhos fluíram “Oito e meio” “Satyricon” “Roma” e o último que ali vi “Amarcord”. Curiosamente, meu encontro com Marcello Rubini, Sylvia Rank, Maddalena (interpretada por Anouk Aimée, de quem nos tempos de adolescente era um fã pra lá de ardoroso), todos de “La Dolce Vita”, foi já adulto e morando no Rio de Janeiro. Mas foi São Paulo, onde morei em seguida e por mais tempo, que minha imaginação e aquelas febres delirativas que percorrem nossas mentes, insistiam ser de certa forma a Roma felinniana de “Dolce Vida”. Esta Roma ficava no bairro do Bixiga. Com seus teatros e atores, fotógrafos recentemente migrados, fugindo da miséria nordestina, clicando casais no meio da noite, poderiam ser em nossa embriaguez os caçadores de imagens comprometedoras, que desde o filme foram batizados de paparazzo. Com os aromas dos oréganos, das mussarelas, dos manjericões, dos parmezones, das calabresas, dos picorinos, dos molhos de tomates de seus restaurantes. A festa de Nossa Senhora de Aquiropita, onde o padre calabrês reprimindo as fantasias das brasilianas ragazzas usava o mesmo discurso da turma do Vaticano, que ciosa de seu papel de tutora de nossas almas já censurara o filme do mestre, proibindo-o para todos por conta de uma suposta imoralidade. Subindo e descendo aquelas ruas tendo como música de fundo tarantelas que vozes encharcadas de grappas desafinavam pela noite adentro. As noites no Café Bixiga ou em tantos outros bares, onde entre músicas e poetas vendendo seus livros, brotavam intelectuais tão atormentados como o do filme. Ocasiões em que saíamos do Cine Bijou, na Praça Roosevelt, tomávamos o rumo do Bixiga pela Rua Avanhadava. Na porta de uma sinagoga antes do viaduto sempre me persignava e meus amigos me reprimiam com um –mas você não é católico – Me benzo em porta de qualquer igreja, até em terreiro de macumba. Coisa de mineiro. Retrucava eu. Depois do viaduto, cruzávamos com o Ferros Bar e suas lesbo-girls, mas, sempre evitávamos parar ali, não queríamos problemas com as ou os recém-chegados ao gênero. Chegávamos à nossa Roma pela Rua Santo Antonio, no Cacciatore entramos para um brodo uma vez só, preferíamos o lá do “Gato que ri” muito mais em conta. Encerramos muitas jornadas pelo bairro italiano retornando pela Ladeira da Memória, de triste memória para mim pelo cheiro de mijo e sua fontezinha mixuruca. Nem embriagado dava para imaginar a Anita Ekberg, naquela bica de tropa de burro beber água, repetindo a mítica cena da Fonte de Trevi. Para mim não tinha jeito, o Bixiga era a cidade de Fellini encravada ao sul do equador. Como em “La Dolce Vita” o Bixiga tinha lá seu estilo de vida mundano, decadente e até seus excessos, mas foi ali, que paramim e alguns amigos a fantasia deste marco do cinema entre o neo-realismo e o simbolismo, fantasmeava nossos sonhos, nossas mentiras, nossas verdades entre uma cerveja e outra.

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