Dória e os dorinhas



   Nestes tempos de pós-verdades, eufemismo para lá de chulo, em que a ponte para o futuro do transilvânico Temer, aquela que o sociólogo de Higienópolis chamou de pinguela, não passa de um túnel do tempo. Onde, a travessia é de hoje para o antes de ontem.  Ocorreu-me lembrar da Chiclete com Banana, uma HQ criada por Angeli. Angeli é um cartunista e quadrinista que está entre os meus autores favoritos. As tirinhas do Angeli traziam personagens como Rê Bordosa, a junkie "porralouca" dos anos 1980; os Skrotinhos, uma versão sacana dos Sobrinhos do Capitão; Rhalah Rikota, o guru espiritual comedor de discípulas; o machão Bibelô; Rigapov, o imbecil do Apocalipse; Bob Cuspe, o anárquico punk. Tudo isto naquele clima cinzento de São Paulo lá nos anos de chumbo.  Em 1985 a HQ publicou: traços e tiques de um New Imbecil – NI.  Lá está entre tantas pérolas estas: “.... Lavar pratos em Nova Iorque é o que há de mais NI. No terceiro mundo sempre foi chic sofrer no primeiro. ... .... Quanto à ferrenha ditadura que se implantou por mais de vinte anos em nosso país, espalhando fome, desemprego, tortura e medo entre todos os cidadãos, os NIs são taxativos: Foda-se! Fodo-me eu, foda-se tu, fodamos todos nós! ...  .... Os NIs são, geralmente, do sexo masculino. Existem garotas NI, é claro, mas são poucas e de fácil recuperação. O mundo é das mulheres, êta nóis! ..."    
Os NIs estão aí em pleno exercício de sua maturidade. São os Olds Imbecis de hoje. OI não tem idade, velha é a sua imbecilidade.  E nessa volta ao útero da ditadura, sonho de vários imbecis, vão surgindo personagens políticos truculentos, ameaçadores, que rezam pelas velhas cartilhas do nazi-fascismo. Verdadeiros OIs.  Entre os OIs, brilha uma versão de Jânio Quadros em tempos digitais. É a mais divertida aos meus olhos. Embora me pareça tão perigoso quanto os raivosos. 
A figura do prefeito paulistano, vestida de verde e vassoura na mão, lembra-me até nos traços físicos o Dick Grayson. Não prestei a atenção à turma ao seu entorno. Mas o mordomo Alfred, consagrado pelo papel higiênico, o comissário Gordon e o chefe O’Hara devem, com certeza estar por perto.   Não lembram do Dick Grayson?    Era aquele rapazola que se transformava ao vestir um par de luvas, short e camiseta verde e um coletinho vermelho, igual ao que a gente usava no Colégio Cataguases em ocasiões solenes.  Não lembraram ainda?  Entre onomatopeias piscando se caracterizava por iniciar suas falas com Santa …, Batman!   É ele mesmo, o Robin.   Burt Ward era o ator. Ator que se   parece com o videomaker compulsivo e dublê de prefeito.  Virou moda.   É o que mais vem replicando país afora, a prefeitada toda fantasiada varrendo rua, limpando monumentos e tome fotos e vídeos, para um marquetizinho nas redes sociais. Até o nosso alcaide entrou na onda. 
Foto de Ronaldo Cagiano em Cascais - Portugal
O burgomestre paulista em seus arroubos janistas vai pintando de cinza a cidade na sua cruzada contra os pixos e apagando também os grafites.  A cidade nesta operação retorno vai ficar com cara de Gotham City. E o nosso Robin sem Batman vai protagonizando seu seriado caipira-chique. 
Fazer o quê?  

Cadê meu vizinho paneleiro?

          Onde se meteu o Euclides? Está desaparecido a tempos. Lembrei dele, enquanto tomava uma cerveja no bar do Zanela e a tv falava de mais uma operação policial. Esta, alcunhada de Cui Bono, informava que um certo ex-ministro, aquele mais gordinho o tal Geddel, integrava uma “verdadeira organização criminosa”.  A última vês que estive com Euclides, só ele que falava. E eu já de saco cheio, para não discutir, comecei a cantarolar. Ele perdeu as estribeiras comigo. – Vou te cobrir de porrada, seu comunistinha de merda! Filadaputa!  O homem ficou possesso por causa de um roquinho de nada.
Euclides se encantou com uma turma que adotou a camisa da seleção de futebol como farda, eu continuo firme com a do Galo, até da seleção o galo vingador já ganhou. A turma do Euclides, abandonou o conforto de suas casas e do ar condicionado e foi prá rua. Passei por eles num domingo à tarde na Chácara Dona Catarina, lá perto da Estação. Meio sem jeito e empunhando um cartaz - Fora Dilma!  Ele tentou me arregimentar para a causa.   – Vem com a gente! Estamos na luta contra o roubo e a corrupção da quadrilha dos esquerdopatas.  Olhando para o grupo, onde só se via os bem-de-vida da cidade. Retruquei, – Ôcrides! E você acredita mesmo que tirando presidente resolve tudo! A presidenta não manda merda nenhuma cara.    – Ela até que não rouba, mas é conivente com o roubo. Continuou ele. Antes que o grupo se aproximasse decidi ir. – Tô vazando Ôcrides. Tenho coisas mais importantes para fazer. Tchau!    Cada vez que encontrava com Euclides, ele estava mais cego; grudado no canal de notícias de sua tv por assinatura, dormia tarde. O papo dele encurtou totalmente, só falava de corrupção e a tal da lava-jato. Ele não tinha outro assunto. Tornou-se monocórdio e ninguém aguenta, muito menos eu, gente se repetindo o tempo todo.  E o domingo do impedimento da presidente chegou. 
Até aquele dia Euclides infernizou a rua. Bateu panela noites e mais noites, de sua janela xingava todo mundo que aparecia na sua tv falando contra o impedimento. Ele quase saiu no tapa com um varredor de rua que se atreveu a falar que aquilo era golpe. – Cê não vê televisão não? Seu tapado! Vai ver que cê também é comunista. Reducionista, era desta forma que ele se dirigia a todos que insinuavam desinteresse pelo assunto.  O catador de papel que percorre toda manhã as lixeiras da rua, morre de medo dele. Sai correndo quando o vê. Mas no domingo do impedimento, parecia final de copa do mundo. Ele meteu uma camisa nova da seleção, segundo um linguarudo lá do bar, ele comprou em quatro parcelas lá na loja do Sinval. A cada voto sim, ele soprava a corneta com muito gosto e da janela berrava, – Somos todos Cunha!  O domingo acabou com ele comemorando longe da rua. Foi lá pro centro.   Tornou-se insuportável para a vizinhança. 
As coisas só acalmaram quando o vice assumiu interinamente o cargo. Eu estava no Zanela tomando uma cerveja e ele apareceu. Sentou-se do meu lado no balcão e saiu com esta.    – Aí Zanela, o homem aqui anda amuado. Meteram o pé na bunda da presidanta dele.  Eu tamborilava os dedos no balcão seguindo o ritmo de um samba que tocavam na tv, devagar fui mudando o ritmo e comecei a cantar a música dos Titãs.  ... A Televisão... Me deixou burro... Muito burro demais... Oi! Oi! Oi! ... Agora todas coisas... Que eu penso... Me parecem iguais... ... É que a televisão...  Me deixou burro...  Muito burro demais... E agora eu vivo... Dentro dessa jaula... Junto dos animais...  Oh! Cride, fala pra mãe!...  Que tudo que a antena captar... Meu coração captura...   Alguns fregueses que já estavam na bronca com ele embarcaram na provocação e passaram repetir.  Oh! Cride, fala pra mãe! ... A Televisão... Me deixou burro... Muito burro demais.  Se não fosse o Zanela, a turma do deixa-disso e dois gatos pingados que tomaram partido de mim. Eu tinha apanhado feio, tal era a raiva em que ele estava.
Durante um tempo cada vez que eu chegava no bar, o Zanela me resenhava o tanto de bate-boca que rolava entre as correntes políticas que frequentavam o bar. – Oh! Este negócio do Oh! Cride! Pegou em! O homem está uma arara contigo. – Mas ele não é tucano?  Retruca interrogativo Pelezinho, um dos dois que tomara partido de mim no dia da confusão. E Pelezinho me pergunta de onde os caras da banda de rock tiraram esta letra maluca. Explico a ele que: Oh! Cride, fala pra mãe!  Era um bordão usado pelo humorista Ronald Golias.  E a vida seguiu. Nunca mais vi Euclides. Até a noite em que o ano já tinha virado e a máquina de fazer burros, falava na tal operação Cui Bono. Aí me deram conta que o meu vizinho Euclides, andava meio catatônico, tomando cartelas e mais cartelas de remédios contra a depressão. Para a turma que se arvorava em paladinos da ética, deve ser duro ter que fazer olhos de mercador para quem anda dando as cartas no poder em Brasília.       
A mídia, que até outro dia batia bumbo junto com a febre amarela que tomara as ruas, está dopada. O povo tinha um caráter cristão que foi atirado para o alto. Nem a erupção da barbárie, o banho de sangue e as degolas nos presídios, não desperta compaixão. Ver um membro do governo aplaudir matança é cruel.  É inaceitável Euclides! Largue seus antidepressivos e vem ver o trem sem rumo em que sua panela nos meteu.


Os topes mexicanos e (ou) as nossas burrices

                O penoso 2016 não tinha chegado ao fim quando li um artigo do jornalista Damien Cave do New York Times na internet – O simbolismo dos topes mexicanos. Os tais topes não é uma praga apenas mexicana, quem anda por aqui também as conhece e muito bem. Não dá nem para pensarmos em fazer galhofa com os mexicanos sobre estas absurdas construções. Esta estupidez, também faz parte das nossas paisagens. No artigo o jornalista diz: – A enésima vez que um tope raspou o fundo do nosso Volkswagen, comecei a praguejar como se um caminhão tivesse nos atingido. Não havia nenhuma sinalização para alertar a proximidade da montanha, por isto bati nela a toda a velocidade. Seu tamanho afetou meu veículo e pelo espelho retrovisor, pude ver as linhas profundas que haviam deixado o chassi do meu carro e de muitos outros antes de mim. Acaso o projetaram mal? Foi um erro? Esperemos.
Estas aberrações, hoje fazem parte da paisagem urbana de Cataguases. Na minha adolescência isto era inimaginável.  Mas o que é um tope?  Então continuemos com o Damien: – Existem milhares, talvez milhões, destas deformações nas estradas rurais e rodovias em todo o México. Os maiores parecem esculturas de Fernando Botero antes de começar a fazê-las mais finas. Em toda a América Latina existem estes redutores de velocidades que recebem nomes pitorescos como "badenes" (Espanha), "lomo de burro" (Argentina), "policías muertos" (Panamá), " rompemuelles" (Peru) e " policías acostados" (Colômbia e Venezuela).
Entenderam? O diabo do quebra-molas não é privilégio da incompetência de nossos políticos nem de nossa falta de educação. É apenas mais uma demonstração do que nos nivela, e por baixo, em nosso terceiro-mundismo latino americano. Continuamos pobres em tudo e de tudo.   Voltando ao texto do Damien: – Quando eu vim para o México como correspondente do The New York Times, eu pensei que os “topes” eram infrequentes e raros. Mas ao longo do tempo, surgiram vários significados, como acontece com muitas outras coisas no México.

Os topes são maravilhas que destroem suspensões e preenchem um vazio da lei e da ordem. Num país onde a regra é a impunidade, os topes são gritos de frustração. Eles são um meio para impor controle de velocidade e civilidade nas ruas, e não é possível evita-los. Não é possível suborna-los para que façam vista grossa.
Mas, voltando aqui para as nossas misérias e nosso subdesenvolvimento. Lembrei-me de um amigo reclamando de uma viagem entre Juiz de Fora e o aeroporto em Goianá.  
– Putaquepariu Zé!   Ainda dentro de Juiz de Fora passei por vários quebra-molas. Na estrada, resolvi contar, depois do trinta, cansei. E ainda estava longe do Aeroporto. Quem foi o imbecil que inventou esta porcaria?  
Em Cataguases, de uns tempos para cá, alcunhados de faixa para pedestres, proliferou uma grande quantidade destas porcarias. Feitos de pequenos blocos de concreto eles destoam completamente dos paralelepípedos de granito que historicamente pavimentam as ruas da cidade. Quem, como eu, nunca foi a Paris, mas assistiu a algum filme que tem a cidade luz como cenário já viu que ela em seu centro histórico e boa parte de seus cartões postais é toda pavimentada com paralelepípedos, como as nossas ruas o são e sem quebra-molas travestidos de faixa para pedestre. 
No meio disto tudo me veio à mente algumas viagens pelas poeirentas estradas da minha infância. Ao lado de uma porteira era comum estar o mata-burro. Nome muito próximo a “lomo de burro” que, segundo Damien, os argentinos usam para estes cretinos redutores de velocidade. Do mata-burro ao quebra-molas, não sei não. Estou achando que nos emburrecemos, e muito.    

A mula com cabeça

                – Cê acredita em mula com cabeça?  Olha ela aí!  Era assim que o meu pai, se referia a todas as burradas de adolescente em que eu me metia. Aquela fase da vida em que a gente comete os desatinos mais despudorados com a maior das inocências. E eu as cometia às mancheias, eram tantas que minha mãe mesmo católica fervorosa, não perdoava. – Mais uma ideia dos infernos. Ô burraldo!   E tome chineladas no meu traseiro. Já adulto, quando me via enrascado em algum ato impensado, lembrava do meu pai. Ele, sempre de bom-humor, chamando a atenção aos meus erros mais grosseiros, as burradas. Aquelas que, tempos depois, te matam de vergonha.  
Tudo isto veio à tona quando me deparei com uma carcomida balzaquiana metida em professorais óculos de aros largos, cabelos pintados, não sei se de ruivo ou acaju. Ela entrou pela minha casa adentro, brotou num vídeo que chegara pelas redes sociais. Num tom grave, afirmava que o país precisava de uma intervenção militar institucional.  Firmei os olhos sem acreditar no que ouvia, – cena nojenta, a nossa bandeira com o símbolo vermelho... numa alusão a uma suposta armação comunista para alterar a bandeira brasileira. Ainda meio incrédulo pensei alto. – Isto é coisa de doente ou de demente.   O vermelho era um círculo, o simbólico sol nascente dos japoneses. Sem entender chongas do simbolismo em comunicação visual, a errante assombração denuncia uma sinistra conspiração, – Preparem-se brasileiros... você que ainda não se deu conta... a bandeira não será mais como a conhecemos... 
Sinto-me estranho, perdido, no meio desta esquizofrenia toda que assola o país. E, aquilo ali era isto. Envergonhado com tamanha ignorância, desliguei o computador e deixei-me cair no velho sofá, lembrando do roqueiro Raul Seixas, ...parem o mundo que eu quero descer por que eu não aguento mais...  Isto pira, enlouquece. Numa lavagem cerebral à jato, nos servem cotidianamente não o remedinho controlado, mas descontroladamente, doses e mais doses das contraditórias mensagens da sociedade de consumo. A maluca parece não conseguir compreender a diferença entre forma e conteúdo de um simples painel comemorativo. E a hora que ela encontrar com bandeira de Minas Gerais? Vai delirar como se tivesse queimado um baseado.    Tremenda mula com cabeça.       
– Vai. Vai assombrar outro, vai!













Anjos Marginais

         O amigo Vicente Costa é um fotógrafo que adora a cena rural, vive rodando pelas pequenas e esburacadas estradas do entorno da cidade à cata de boas imagens. Já engoli muita poeira em uma ou outra destas andanças por aí, acompanhando-o.  Na área urbana ele está sempre pelos brechós, velhas oficinas, lojas de móveis usados e ferros-velhos da cidade, remexendo objetos que o olhar de fotógrafo vislumbra alguma nova possibilidade.   O Welington Babalu diz que ele é como o Pury; são artistas, barganhistas e reviradores de sucata. Nestas rondas, ele acaba conhecendo figuras que têm olhares surpreendentes sobre coisas que a cidade descarta, atirando ao lixo ou abandonando pelas ruas e calçadas e até nos rios.    Numa ocasião ele me levou à casa de Getúlio. Este mora num beco, lá pelas bandas da Vila Tereza, que termina na margem do Rio Pomba, bem ali onde outrora, o rio dividia-se em dois formando a Ilha de Santa Helena. Enquanto Vicente o chamava, eu olhava uma velha moto abandonada, suponho o imenso trabalho para levá-la até ali. O homem surge atrás de uma fresta de porta aberta, olhar arredio, barba grisalha, jeito tímido, lembra-me um beato da caatinga nordestina em tempos de cangaço, imagem que frequenta minha imaginação desde a adolescência.  Atende-nos de forma reticente, é visível que não quer ser importunado por um estranho como eu. Parecia proteger dos meus olhos um imenso tesouro. Vicente que já estivera na casa noutras ocasiões, já me descrevera o interior da casa. Segundo ele, é totalmente ocupada por peças que ele recolhe pelas ruas, formando um labiríntico emaranhado. Getúlio em seus hábitos noturnos, roda a cidade, mergulhada em seus silêncios, recolhendo coisas que encontra pelas ruas e lixeiras.
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Acervo de Vicente Costa
Certa tarde, encontro-me com o amigo fotógrafo no boteco do Sebastião Cançado. – Zé você precisa conhecer o Gabriel, o cara é interessante. Ele tem um barco e vive da cata de objetos atirados ao Rio Pomba. O quintal da casa dele está lotado. Tem cada coisa que você nem imagina.   Num domingo, aventurei-me atrás do Vicente numa visita ao Gabriel. A data precisa não lembro mais, foi lá por volta de 2002. Passamos algumas horas no quintal dele conversando e eu observando o absurdo de materiais separados e organizados, numa área bem grande que finda junto ao barranco que beira o rio Pomba. Ali, amarrado num toco, flutuava um barco azul.      
Gabriel é um catador de ferro velho diferente. Barqueiro, deslizava pelas águas do Pomba recolhendo plásticos, latas, colchões, móveis, madeiras de todas as formas e tamanhos. Em seu quintal até uma maca de ambulância dormitava entre os objetos retirados do rio. Ele descrevia os bichos que ainda habitam as poucas margens do rio ainda sem cercas e lixo, seus olhos brilhavam enquanto nos falava de lagartos, cobras, capivaras, peixes e aves com os quais conversava durante suas andanças pelas águas.   Messianicamente ele conduzia sua vida numa interação apaixonante com o Pomba, um Quixote em pleno terceiro milênio, acredita piamente no rio e nos animais que vivem nas suas águas e suas barrancas, carinhosamente dialoga com seus companheiros que habitam este manancial de vida.    A cidade trata os dois com a mais absoluta indiferença, mas ele não se importa, para ele o que importa é o rio, sentimos nele a temperança, a sensatez, o conhecimento justo das coisas, a indignação sem dogmas dos prudentes enfim a sabedoria que só os especiais alcançam. Gabriel, como Getúlio, são anjos que à margem do rio guardam o já desfalecido Pomba. 

A laranja mecânica e o tico-tico-no-fubá

          Corria o ano de 1974, eu migrara para o Rio de Janeiro no início de 73. Como vários amigos, eu buscava trabalho e estudos.   Caipira inocente entusiasmei-me com a cidade-estado. O Rio era a capital da Guanabara.   Sem grana, batendo canelas por todos os lados, acabei encontrando os eventos gratuitos do MAM, Sala Cecília Meireles e Salão Leopoldo Miguez; nestes espaços as artes borbulharam minha cabeça de interiorano. Como poderia ter dito Graciliano Ramos, me desentopeiraram. Quando a grana permitia, aventurava-me pela geral do Maracanã para uma partida de futebol. Entre uma refrescada e outra pelas praias descobria os prédios do centro. Nestes prédios a corte imperial criou muitos mau-costumes.   A república os enraizou e são mantidos até hoje nas franjas do poder. Basta olhar a quantas anda a corrupção e a falta de caráter dos políticos em Brasília. No ano da minha chegada, as obras do metrô iam naquela marcha lenta típica de obra pública. O seu traçado fora alterado para não afetar as fundações do Palácio Monroe.  Apesar disto, numa campanha capitaneada pelo O Globo, pedia-se a demolição do antigo Senado. Alegavam que além da estética ele atrapalhava o trânsito. O prédio da Praça Mahatma Gandhi foi ao chão sem a menor piedade. Era o mandarinato dos Marinhos, acólitos e sócios dos ditadores, se fazendo presente.  Em quinze de março acabara o mandato do general Médici, responsável pelo período mais duro da ditadura.
  Já que a repressão era dura e a censura corria solta, o único assunto que todos compartilhavam sem o menor receio era futebol. E olha que até nisso os ditadores metiam o bedelho. Médici, em 1970, mandara a CBD escalar Zagalo no lugar de João Saldanha e convocar o Dario do meu Galo para o ataque.   Só se falava dos preparativos da seleção e o campeonato carioca. No torneio, o grande time do ano era o América e o Luisinho seu artilheiro. E lá estavam, além do América, Bonsucesso, Madureira, Campo Grande, São Cristóvão, Portuguesa, Olaria, Bangu e os quatro ditos grandes. O único campeonato estadual que só tinha times da mesma cidade.  A seleção era comandada pelo pão-duro e supersticioso Zagalo, cercado de amuletos e manias, incluindo uma fixação pelo número 13, até nós achávamos aquela seleção imbatível. O Brasil deitara na fama de ter conquistado definitivamente a Taça Jules Rimet, posteriormente roubada e derretida. A grande sensação do futebol mundial era o Carrossel holandês comandado pelo Cruyff, morto recentemente, mereceu até a afirmativa do jornal L’Equipe, “Johan Cruyff era como os Beatles ou os Rolling Stones”.  Além do futebol, Amsterdã, a capital, despertava em nós uma grande admiração, pelo modo de vida que oferecia aos seus; as ideias, as práticas contemporâneas e a liberdade. Era o magisch centrum (centro mágico) da Europa.  Uma espécie de paraíso na trilha dos hippies europeus. Centenas deles se apropriavam de praças e parques para consumir maconha sem repressão alguma.
E nós, quanto a liberdade, nem votar podíamos. Perguntaram ao Zagalo o que ele achava da Holanda. Ele no maior salto alto: – A Holanda?  Um bom time, nada especial. Seu ataque não finaliza bem. Joga um futebol meio na base do tico-tico no fubá.   Já na Alemanha antes de enfrentá-la na semifinal da Copa, voltou a arrotar sua arrogância: – O time deles é bom, mas os holandeses não têm tradição em Copas e isso pesa. A Holanda não me preocupa. Estou pensando na final com a Alemanha, e voltou a repetir, A Holanda é muito tico-tico-no-fubá, que nem o América dos anos 50. Derrotado por 2x0, admitiu: – Perdemos para uma grande equipe. ” A vitória da Laranja Mecânica sobre o tricampeão do mundo foi o feito que faltava para o futebol total.   O Zagalo, pontinha ciscador, este sim um verdadeiro tico-tico no fubá, deu uma de inhambu piando em festa de jacu. Tomou um baile da Laranja Mecânica.