O golpe de 64 me pegou lá no grupo da Vila, no curso primário. Nessa época também, pela primeira vez, coloquei os pés no Colégio Cataguases. Fui convidado por um primo a assistir uma sessão de cinema num cineclube.
Percorremos, sentindo o cheiro de flor da noite, a avenida por onde até hoje também correm os trens. Aquele aroma é dos mais antigos que minha memória ainda retém da cidade. O outro era o mau cheiro do Meia Pataca, desaguadouro da lixívia de uma fábrica de papéis, que até hoje relaciono ao cheiro do golpe militar.
Saindo da avenida pegamos uma estrada de terra e nos embrenhamos na escuridão, depois, subimos uma estrada esburacada. Do meio do nada, diante dos meus olhos brilhando de espanto, bem no meio de um restinho de Mata Atlântica, surge no breu da noite, todo iluminado um prédio branco, muito grande, belíssimo, enorme. Sobre o impacto de tão fantástica visão, me sentindo ainda meio abduzido, fui levado pelo primo para o local da projeção – um antigo refeitório. No caminho, me vi pela primeira vez diante do mosaico de Paulo Werneck e a sedução por aquele lugar tomou meu coração-menino. Só me dei conta do filme lá pelas tantas: um candidato prometia, em preto e branco, casa, comida e roupa lavada em troca de votos. Tempos depois descobri que o personagem era o Coronel Januário em O Canto da Saudade, de Humberto Mauro.
Mais quatro anos depois do golpe, eu estava lá no meu terceiro ano ginasial, nas minhas incursões infanto-juvenis pelo jardim Burlemaquiano, diante do prédio do Oscar Niemayer. Nada sabia eu sobre fatos políticos: o ano mal começara e, no dia seguinte ao meu aniversário, na Carolina do Sul, um dos estados unidos do Tio Sam, três jovens estudantes que protestavam contra o segregacionismo racial foram mortos pela polícia. Hoje, também sei que na véspera do meu aniversário, François Truffaut iniciou a filmagem de Beijos Proibidos. Meu interesse era o de desfrutar da piscina e do campo de futebol disponível na nova escola, espaços inexistentes no velho grupo escolar.
Havia ali algo encantador. Já na entrada, dávamos com a delicadeza da arte popular exposta em várias vitrines. Parávamos no caminho do auditório para ver as cenas da violência contra Tiradentes no imenso e original mural do Portinari, apelidado pelo nosso poeta maior de Outdoor do Partido Comunista... E nós concordamos com ele.
Ironia. Não se fazem mais comunistas do naipe do próprio Candido Portinari do Oscar Niemayer e Luiz Carlos Prestes. Hoje, os comunas da nossa paroquiana cidade, feito Macunaímas, avacalham com a Doutrina: confessam e comungam aos domingos na missa das dez do Santuário Municipal. O Mural e muitos amigos meus foram levados à força para São Paulo. A obra, para revêla, é necessário, hoje, ir ao Memorial da América Latina, na Barra Funda. Já os amigos, muitos ainda enfrentam por esse Brasil afora a barra da vida.
No auditório, Dona Lila, professora de canto, ensinava-nos aquela fieira de hinos pátrios, entre eles, a primeira obra do Ari Barroso que sabia na integra, letra e música: Salve o Colégio que é sem parde Cataguases... A música que embalava nossa infantil rebeldia precoce era É proibido proibir , frase que pulara dos muros de Paris para a boca do Caetano Veloso. Cultuávamos mesmo era Simon e Garfunkel cantando a trilha sonora do Primeira noite de um homem, filme de Mike Nichols com Dustin Hoffman.
Na minha casa eu já assistia a uma TV novinha, possivelmente, uma Colorado RQ. Controle remoto ainda era delírio de ficção científica e ainda não se tinha nem certeza que veríamos a Copa de 70 ao vivo. O telejornal, não me lembro se era o Repórter Esso, anunciava a ofensiva do Tet no Vietnam. Mais adiante, em imagens tremulantes, víamos as primeiras viagens das Apolos e já nos imaginávamos embarcando para lá do futuro, que seria o terceiro milênio, na Enterprise, com o Spock em nossa jornada pelas estrelas.
Suspiro geral de nossas amigas de escola por Alain Delon, Jerry Adriany e tantos outros que, despeitados, julgávamos sem talento. Com a ajuda intelectual de um amigo, provocávamos, dizendo que os verdadeiros galãs seriam Eli Wallach, Steve McQueen, Charles Bronson e Yul Brinner todos no elenco de Os sete magníficos. Com ele, ficamos sabendo que Vladimir Palanuik era nada mais nada menos que outra celebridade do cinema o Jack Palance. Mais tarde descobrimos que toda aquela boa vontade conosco tinha como pano de fundo sua estratégia de socialização com a turma: deu certo e explicam-se assim os nossos fracassos e o seu sucesso com o público feminino do ginásio. Ficamos na rabeira do processo.
Meu senso crítico começou a despertar ainda naquele ano, quando um professor de história tecia loas a ausência do racismo no Brasil. Não nos deu também nenhuma explicação sobre o assassinato de Martin Luther King. Execrava o gesto dos punhos cerrados de atletas negros norteamericanos nas Olimpíadas do México – dizia ser coisa dos malucos Panteras Negras. Diante da televisão, minha avó, que além de negra e analfabeta, rezava em latim, excomungava na língua dos orixás os escravocratas de todas as épocas. O genial A Odisséia no Espaço estava sendo escrito naquele momento e se transformaria num dos nossos filmes favoritos mais adiante. Os jornais caiam de pau no fim da Primavera de Praga, sufocada pelos tanques e coturnos soviéticos, mas pouco falavam de Edison Luis, estudante, assassinado pelos coturnos brasileiros no poder.
Nosso outono cinzento que começara no primeiro de abril de 1964, ainda se tornaria, com o ai-5 o longo e nebuloso inverno da ditadura brasileira. Eu e meus amigos mergulhamos no escuro dos cinemas da cidade, sentíamo-nos mais seguros ali, era para nós uma espécie de útero materno e a tela o nosso cordão umbilical com o mundo, tendo como nossos guardiões Bonnie and Clyde.
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