Alguém sabe do “Ilha desconhecida”?


Apareceu no bar da esquina, trazido pelas mãos do Vanderlei Pequeno que o encontrara, junto a um amontoado de lixo, em uma rua central de Juiz de Fora. Curiosamente é aquela cidade, tida pelo escultor Amílcar de Castro, como a Lisboa mais próxima do seu quintal. Talvez seja esta semelhança que levou Murilo Mendes a optar pela original, preferindo as margens do Tejo às barrancas terceiro-mundista do Paraibuna.
Mas o nosso abandonado em Juiz de Fora, migrou para Cataguases. Trazia no “rosto” as marcas da violência de ser atirado às ruas. Puído e com afundamentos pelo lombo, uma marca arredondada deixada por molho barato, deve ser aqueles ácidos extratos de tomates ou azedos catchups, o que dá no mesmo. O coitado trazia outras marcas horríveis, de um amarelo fecal, que pareciam ter sido feitas por respingos de mostarda estragada.
O primeiro a sair com ele do bar foi o Emerson passando alguns dias lá pelos lados da Pampulha. Voltou ao bar, desaparecendo para a Granjaria com o Altamir. Esteve em minha casa, no Baixo Haidée, por uma semana. Voltou à Pampulha em companhia do Luiz Lopez. Reapareceu no bar por alguns dias e desapareceu.
Naqueles dias, com ele entre nós, discutimos muito sobre os portugueses, suas aventuras marítimas e sua venturosa literatura. Emerson começou lá pelo Camões e a epopéia dos Lusíadas, alguém comentou em contraponto a incrível poesia de “Mensagem” do Fernando Pessoa, enquanto outro cantarolava: “... navegar é preciso... viver não é preciso...” tentando imitar o sotaque do Caetano Veloso. Quem também apareceu nas conversas foi Miguel Torga, que quando ainda só era conhecido como Adolfo Correia da Rocha saiu lá de Trás-os-Montes “singrou” o Atlântico, para trabalhar numa fazenda aqui na Zona da Mata e estudar no Colégio Leopoldinense, é isto mesmo, a Leopoldina onde o coitado do Augusto dos Anjos encerrou a “carreira” e está enterrado. Até o Henrique Frade foi lembrado, não pela literatura, mas pela “ficção” de ser o único atleta de origem lusitana daquele time de peladeiros do Chico Buarque. Circunavega para lá circunavega para cá chegamos a José Saramago, lembraram da presença dele em uma edição do Fórum Social de Porto Alegre num discurso quixotesco, permeado de ceticismo e descrença, metendo o pau no utopismo.
A vocação de navegantes dos portugueses que nunca se apaga, ainda que nos pareça nos dias de hoje que esta chama se mantém mais acesa na memória do que nos oceanos, nos leva a lembrar do nosso desaparecido.
Será que nosso amigo, feito a caravela, um bocado modificada pelos arranjos e adaptações, amarrotada, continua seu propósito, singrando os mares dos saberes ou os oceanos das ignorâncias segundo as vontades de Netuno?
Talvez só o Vanderlei Pequeno saiba por onde ou com quem anda, aquele livro que ele nos apresentou. O ótimo “O conto da ilha desconhecida” do José Saramago.

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