O
amigo Vicente Costa é um fotógrafo que adora a cena rural, vive rodando pelas
pequenas e esburacadas estradas do entorno da cidade à cata de boas imagens. Já
engoli muita poeira em uma ou outra destas andanças por aí, acompanhando-o. Na área urbana ele está sempre pelos brechós,
velhas oficinas, lojas de móveis usados e ferros-velhos da cidade, remexendo objetos que o olhar de fotógrafo vislumbra alguma nova possibilidade. O
Welington Babalu diz que ele é como o Pury; são artistas, barganhistas e
reviradores de sucata. Nestas rondas, ele acaba conhecendo figuras que têm
olhares surpreendentes sobre coisas que a cidade descarta, atirando ao lixo ou
abandonando pelas ruas e calçadas e até nos rios. Numa ocasião ele me levou à casa de Getúlio.
Este mora num beco, lá pelas bandas da Vila Tereza, que termina na margem do
Rio Pomba, bem ali onde outrora, o rio dividia-se em dois formando a Ilha de
Santa Helena. Enquanto Vicente o chamava, eu olhava uma velha moto abandonada, suponho o imenso trabalho para levá-la até ali. O homem surge atrás
de uma fresta de porta aberta, olhar arredio, barba grisalha, jeito tímido,
lembra-me um beato da caatinga nordestina em tempos de cangaço, imagem que frequenta minha
imaginação desde a adolescência. Atende-nos de forma
reticente, é visível que não quer ser importunado por um estranho como eu.
Parecia proteger dos meus olhos um imenso tesouro. Vicente que já estivera na
casa noutras ocasiões, já me descrevera o interior da casa. Segundo ele, é totalmente
ocupada por peças que ele recolhe pelas ruas, formando um labiríntico emaranhado. Getúlio em seus hábitos noturnos,
roda a cidade, mergulhada em seus silêncios, recolhendo coisas que encontra
pelas ruas e lixeiras.
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Acervo de Vicente Costa |
Certa tarde, encontro-me com o amigo fotógrafo no boteco do Sebastião Cançado. – Zé você precisa conhecer o Gabriel, o cara é interessante. Ele tem
um barco e vive da cata de objetos atirados ao Rio Pomba. O quintal da casa
dele está lotado. Tem cada coisa que você nem imagina. Num domingo, aventurei-me atrás do Vicente numa
visita ao Gabriel. A data precisa não lembro mais, foi lá por volta de 2002. Passamos algumas
horas no quintal dele conversando e eu observando o absurdo de materiais separados e organizados,
numa área bem grande que finda junto ao barranco que beira o rio Pomba. Ali,
amarrado num toco, flutuava um barco azul.
Gabriel é um catador de ferro velho diferente.
Barqueiro, deslizava pelas águas do Pomba recolhendo plásticos, latas,
colchões, móveis, madeiras de todas as formas e tamanhos. Em seu quintal até
uma maca de ambulância dormitava entre os objetos retirados do rio. Ele descrevia os bichos que ainda habitam as poucas margens do rio ainda sem cercas e lixo, seus
olhos brilhavam enquanto nos falava de lagartos, cobras, capivaras, peixes e aves com
os quais conversava durante suas andanças pelas águas. Messianicamente ele conduzia sua vida numa
interação apaixonante com o Pomba, um Quixote em pleno terceiro milênio,
acredita piamente no rio e nos animais que vivem nas suas águas e suas
barrancas, carinhosamente dialoga com seus companheiros que habitam este
manancial de vida. A cidade trata os
dois com a mais absoluta indiferença, mas ele não se importa, para ele o que
importa é o rio, sentimos nele a temperança, a sensatez, o conhecimento justo
das coisas, a indignação sem dogmas dos prudentes enfim a sabedoria que só os
especiais alcançam. Gabriel, como Getúlio, são anjos que à margem do rio guardam
o já desfalecido Pomba.
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