05 de março de 1978






                            Morávamos, eu e alguns amigos todos mineiros de Cataguases, num apartamento do Largo do Arouche; bem em cima de O Chefão. Foi o primeiro lugar em que morei na cidade após chegar do Rio de Janeiro. Gostava dali. O ir e vir pela São João, virar a esquina do Hotel São Rafael; de vez enquanto dava de cara com algum time de futebol saindo ou chegando do hotel. Subir a Vieira de Carvalho rumo a Feira Hippie na Praça da República. Mal virava uma das esquinas entrando no Largo, sentia-me numa pracinha qualquer da Europa. O Dinho’s Place, o Le Casserole, havia também um restaurante húngaro que não me lembro o nome. Lá em baixo, descendo para a Duque de Caxias, ficava o Cine Arouche. No sentido da Rua Aurora estava o O Gato que ri. Perdia, prazerosamente, um bom tempo observando o carinho dos floristas arrumando e aparando as hastes de suas rosas no Mercado das Flores, bem no meio do Largo. Muitas vezes atravessava a pista, aspirava alegremente o cheiro das flores e ia olhar as curvas daquela mulher deitada em sua nudez esculpida pelo Brecheret.
Naquele dia havia uma incontida alegria entre nós. Ansiosos aguardávamos o jogo do São Paulo contra o Atlético. Eu e o amigo Idigar Sena, éramos dois atleticanos convictos, ele nem tanto, por que se dividia entre o Galo e o Flamengo do Rio. Tínhamos certeza que seríamos campeões. Só que virou um dia para se esquecer que tornou-se inesquecível.
Eu já me tornara um atleticano ferrenhamente apaixonado. Além do beque Luizinho, desculpem-me, aprendi com meu pai chamar zagueiro de beque lá nas barrancas do Meia Pataca no velho campo do Flamenguinho de Cataguases. Luizinho era um beque refinado, esguio e elegante no trato com a bola. Dava gosto vê-lo retirar a bola dos atacantes, numa época em que era moda terem centroavantes fortes e trombadores. Acho que algum técnico maluco andou querendo incorporar ao nosso futebol aquelas jogadas de pura força física do futebol americano, aquele da bola oval. Mas o Luizinho afanava a bola do infeliz e como o velho Meneghetti, que após bater a carteira da vítima, saia com uma suavidade felina driblando espetacularmente seus perseguidores.
Mas, meu ídolo mesmo, era o Reinaldo, baixinho, negro como o Luizinho e futebol atrevido. Aquele time do Galo jogava por música e ele era o Milles Davis numa inebriante Jam Session. Destoava do padrão dos centroavantes que fizeram sucesso até ali. A maioria empurradores de bolas para o barbante, alguns de um grossura de dar dó. Idigar dizia que Reinaldo era um ponta de lança. Eu pouco me importava com as definições. Era meu ídolo, por, além de ser um genial jogador, comemorava seus gols com o braço erguido e punho cerrado, num protesto silencioso como os negros americanos Tommie Smith e John Carlos fizeram num pódio da Olimpíada do México. Lembraram-me mais tarde que o branco que dividia com eles o protesto e a glória do pódio, foi excomungado dos esportes pelos australianos. Querem atitude mais racista e filadaputa? Cá pra nós, futebol é um dos meios mais reacionários e corruptos que temos. Imagine no meio da ditadura a CBD comandada pelo João Havelange. Aquelas comemorações despertavam a ira do regime militar, eram claramente contrárias à ditadura e estimulava em nós o desejo de combatê-la. Entre meus amigos isto era fato, reforçavam nossa convicção na busca da democracia.
Pela televisão tomamos conhecimento que Reinaldo não jogaria, fora julgado na véspera por conta de uma expulsão lá no início do campeonato. Idigar, já indignado com tamanha sacanagem, esbravejava e xingava, afirmava que tudo era uma armação para compensar a suspensão do Chulapa, um centroavante, desses que tinha aos montes até na várzea. Eu tinha certeza que os milicos estavam dando mais um golpe na gente. Aquilo tinha mexido comigo, me deixara triste e apreensivo. Reinaldo fizera o absurdo número de 28 gols nos 18 jogos em que atuara. Era minha certeza de gol. O Galo chegara invicto, se fosse por pontos corridos já seria campeão a muito tempo, mas graças ao “genial” regulamento tinha apenas a vantagem de fazer a decisão em casa, não podendo nem ao menos empatar para ser campeão. Era preciso vencer. Estava preocupado. Idigar afirmava que só faltava terem comprado o juiz. Nem me dei conta de quem substituiria o craque. O jogo seguiu num morrinhento zero a zero, seguido de uma prorrogação dura de ver. Até que a agonia foi para os pênaltis. Não é que depois de tanta expectativa um tal de Joãozinho Paulista bateu um pênalti, atirando a bola lá na Lagoa da Pampulha. Vacilo atleticano, onde já se viu botar um paulista bater pênalti contra o São Paulo? Perdemos o campeonato invictos, não perdemos um jogo sequer. Putos, fomos encher a cara e afogar as magoas num boteco da Rua do Mário de Andrade, a Aurora. Depois disto, prometi nunca mais dar muita bola para o futebol.

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