Retirantes na terra da garoa
















Samba do Bixiga - Adoniran Barbosa

Domingo nóis fumo num samba no Bixiga
Na Rua Major, na casa do Nicola
à mezza notte o'clock, saiu urna baita duma briga
Era só pizza que avoava, junto com as brajola
Nóis era estranho no lugar
E não quisemo se meter
Não fumo lá pra brigar
Nóis fumo lá pra comer
Na hora H se enfiemo debaixo da mesa
Fiquemo ali de beleza, vendo o Nicola brigar
Dali a pouco escuitemo a patrulha chegar
E o sargento Oliveira falar:
"Num tem importância, vou chamar ditas ambulância!"
Calma pessoar! A situação aqui tá muito cínica!
Os mais pior vai pras clínicas.




Ali, na Rua Major Diogo, em um laboratório de foto-acabamento, trabalhavam Zé de Nana e Zé Bento. Encaravam o batente de duas da tarde até o meio da noite. Invariavelmente em torno das sete horas da noite saiam para o jantar. Costumavam comer qualquer coisa ora no bar do Giovani, toscano pão duro de dar dó, ora no bar do Salim, sírio sovina que só ele. Um ficava na esquina do laboratório em frente a um posto de gasolina, outro mais adiante em frente a um colégio e um banco, que atendia pelo nome de Brasileiro de Descontos. Nossos peões já viviam chateados com tantos descontos em seus holerites, que se sentiam péssimos em ali entrar para receberem suas mixarias mensais, o tal de salário. Os dois, um cearense e outro mineiro, traziam suas formações culturais e deformações físicas lá das suas miseráveis cidades de origem.
Zé Bento era devoto de Nossa Senhora do Rosário, segundo ele padroeira dos pretos lá nas Minas Gerais. Zé de Nana num fervor doentio com o Padim Ciço. Às vezes numa sexta feira, aquelas mais próximas ao pós-pagamento, se luxavam em jantar, no bar do Cunha, madeirense unha de fome, que ficava na primeira quadra após o viaduto sobre a Nove de Julho, quase esquina da Rua Santo Antônio. O português tinha lá uma tal de panqueca, que os dois devoravam avidamente, sem despregar os olhos de suculentas porções de bacalhau, que os provocavam numa vitrine bem ali no balcão. Sonhavam com uma grana extra, quem sabe o décimo terceiro para só então botar na boca aquele cheiro que tanto provocava o nariz. Certa noite os dois lá estavam, bem no fundo do bar com seus cheiros e sonhos de consumo. Quando entra no bar um casal, um bebê e um carrinho. Zé Bento olha para a criança com aquele olhar terno e sofrido de migrante. Como se invejasse uma infância que não teve nem daria aos teus. Zé de Nana por sua vez olhava para o casal com aquele olhar submisso, testa baixa, de sertanejo. Mas foi com uma grande expressão de espanto na cara, que incomodou um dos recém chegados. Este olhando na direção dos dois sapecou: O que foi? Por alguns instantes o silêncio tomou conta do bar. Zé de Nana foi o primeiro a sair da absorção dos pensamentos. Encarou o manifestante com aquele olhar firme de cearense e com aquela forma direta de falar dos de lá: “Omi! Minino! Vixe! Tu não é ome não?" Zé Bento que já percebera as semelhanças e diferenças do casal, ao pé do ouvido do companheiro: “Oia é uma daquelas que saracoteia lá naquele bar da Avanhadava. Cumé qui chama mesmo?” Zé de Nana: “Ferros Bar?” “É... é...” retruca o outro Zé. Para eles era um choque. Naqueles anos de fim de ditadura, greves de metalúrgicos, a tal da anistia já era uma confusão danada na cabeça. Agora imagina dá de cara com um casal de mulé com muié, no falar dos dois. Passado o susto, Zé de Nana, se pois a olhar alternadamente para a criança e o mulé. Abriu uma risada debochada e mandou: “Ô bichim! Mas o mininim num parece com cê!” Zé Bento reforçando: “Mai é mermo. Nem co’a mãe! Pra modis eu entedê quem é a mãe?” Zé de Nana: “Qualquer um serve. Tou tentando entendê quem é o diabo do pai”.
O casal já acostumado a encarar a não compreensão de suas opções preferiu sair. Mas para os dois não dava para aceitar essas modernidades. Eram religiosos demais, já era duro admitir um homem virando flozô. Imagina uma mulher carçando butina. “Cruiz em credo” dizia o Zé Bento. Zé de Nana: “Arre minino mulezada da gota”. O Cunha que até ali só gargalhara com a situação, não perdoou os dois matutos, ridicularizou-os ao máximo. Depois se pôs a explicar, num preconceito de português salazarista, suas visões de homossexualismo, lesbianismo e simpatizantes. Os dois migrantes já não entendiam absolutamente mais nada. Zé de Nana encerra a prosa do português sugerindo ao seu parceiro cantar uma das suas cantigas. Zé Bento que era chegado num calango pôs-se a cantarolar: “Olê Olê... Olê Olá Uma cana quebra outra no meio do canaviá. Lá no alto daquele morro passa boi passa boiada Só não passa muié macho embuchada. Olê Olê... Olê Olá...”.

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