Um olhar enviesado sobre Vicente
Fernando é amigo de velha data. Estudamos nas mesmas escolas públicas de
Cataguases; crianças, frequentávamos a igrejinha da vila, conduzidos por nossas
mães, fervorosas católicas. Também fomos vizinhos e depois de muitos anos de
andanças e mudanças, mais minhas do que dele, novamente, voltamos a nos tornar
vizinhos. Regularmente nos reunimos para assistir algum filme de seu fantástico
acervo. Livros e filmes, são algumas de nossas paixões e das mais antigas.
Vicente, o personagem,
faz parte de uma geração que viveu o início do golpe militar lá em 64, ainda um
menino em sua escola. Adulto volta ao
seu antigo ginásio, como professor e, a ditadura ainda teima, persiste nos seus
mais de vinte anos de existência.
O autoritarismo molda ao seu feitio aqueles que vergam com
facilidade a espinha, já os que não se
deixam dobrar são perseguidos até por bedéis, simplórios acólitos de um poder
estabelecido pelo medo. Sua escola, lá atrás, foi responsável por uma formação mais humanista,
incompatível com a doutrina da ditadura, que se fiava o tempo todo no terror e
na delação. Os ditadores e seus títeres trataram logo de reformar o ensino, parecendo
que o único objetivo era afastá-lo do livre pensamento. Uma das inadaptações do novo professor deriva
desta incompatibilidade entre as duas escolas.
Seu amadurecimento em tempos de angústias ideológicas, violências
físicas e morais, transformam sua vida em uma agonia existencial sem fim. A censura, o estado policialesco torna sua
pequena cidade um lugar vazio, oco, os relacionamentos artificializam-se,
mentem uma lealdade inexistente. Como sempre, em meio às ditaduras, ou por medo
ou por conveniência, muitos não titubeiam em covardemente, cometer
traições. É neste pantanoso ambiente, de uma escola onde
do diretor ao bedel campeia a delação que vai tentar trabalhar Vicente.
Em meio a isto surge uma aluna adolescente que transforma
sua vida em uma montanha russa de sensações e ações. Professores vivem no fio da navalha; adultos,
vivem cercados de adolescentes “transbordando” hormônios, descobrindo seus
corpos e latejando sexualidade. Imagino não ser nada fácil, controlar o
despertar das “paixões” e suas próprias excitações. Já Vicente, quem sabe por
ter tido Nabokov como uma das suas leituras adolescente, deixou-se levar por esta
Lolita, que se revela uma machadiana Capitu, numa fantasia que subvertesse
aquele tempo de obscuridade e frustrações com a beleza irradiada de uma mulher-menina.
Fernando constrói o romance como cineasta na moviola, faz
cortes que tira o leitor de um rumo previsível, atiçando-o a reflexões. Curtos
trechos de notícias reais vão balizando a temporalidade da narrativa. É um
romance instigante.
Além da amizade, o que torna estas linhas ainda um tanto
quanto tendenciosas, é ter encontrado entre os personagens, um que se inspira
no meu velho Antônio Pereira, o que me deixou bastante feliz.
Nenhum comentário:
Postar um comentário