Primeiro de abril de 1964

Grupo Guido Marlieré Acervo do Arquivo Público Mineiro 

       
          
       Na década de sessenta, no final do milênio, meu mundo circunscrevia-se ao Bairro Haideé, a Vila Domingos Lopes limitados pelo ribeirão Meia Pataca, a Estação Ferroviária e o Campinho dos Menezes.  Para fora destas fronteiras era a imaginação e a fantasia.  Neste universo restrito, onde o peso da vivência familiar dividia-se com frequentar a igrejinha da Vila e o Grupo Escolar Guido Marlieré. Neste, só chamávamos de Guido, fiz meu curso primário.  Neste ambiente cresci até a metade da década, em 1966 fui para o Colégio Cataguases cursar o ginasial e ver o mundo e suas possibilidades se escancararem diante de meus olhos.
Nesta primeira metade dos sessentas, minha formação se deu dentro da rigidez dos princípios da igreja católica apostólica santariana.  Isto mesmo, todo mundo frequentava a igreja, era católico, mas se pegava mesmo era com seu santo de devoção. Menino ainda, eu achava esquisito ser católico romano se eu era mineiro, além do mais não foram os romanos que crucificaram Jesus?      Eu vivia uma espécie de poligamia devotiva, cada dia me fiava com um santo diferente. Tinha medo de olhar muito tempo para as imagens das santas, eram muito bonitas. Poderiam provocar alguma coisa esquisita, como olhar o assanhamento de algumas amigas já provocava. Respeitosamente abaixava cabeça e rachava fora.  Na escola a rigidez era a mesma, sempre andando em filas e em silêncio, só nos recreios e que a meninada podia soltar-se um pouco. Agora liberar tudo o que ficara represado só do lado de fora da escola ao fim das aulas. Ali se resolvia no tapa as brigas encomendadas lá dentro, em meio à algazarra que rompia aquele silêncio forçado da escola.
Vivia eu dentro deste caldo de cultura reprimido por valores morais católicos, preconceitos dos mais variados e a franciscana pobreza operária de meu bairro. Estranhava o silêncio de todos com os bígamos que saiam diariamente de suas casas lá das partes nobres da cidade para frequentar suas amantes que também viviam por ali. Aquilo não era pecado? Não era imoral? Não entendia essas diferenças. Para além do meu mundo havia um mundo bem diferente.
 Aqui e ali, pela boca do Zé, primo mais velho que viera lá de Itaobim morar conosco, um ou outro lampejo do que ocorria no mundo lá fora.  A bossa nova, Miss Universo, o tal de rock and rol, o Sputnik. Lembro claramente dele irrompendo pela sala: “Tia! Tia! Mataram o John Kennedy.” Eu não fazia a menor ideia de quem era esse JK. JK famoso para mim era o lá de Diamantina, o presidente que tinha criado Brasília a nova capital.   Fascinava-me em vê-lo, enquanto minha mãe cuidava do almoço, contando detalhes do filme que tinha visto no cinema.  Já tinham me levado algumas vezes ao cinema, não me lembro do primeiro filme que eu vi, mas lembro da música do Canal Cem quando ia mostrar futebol: “... Tchan ran tchan tchan ran... Que bonito é...” Nesta hora o cinema parecia a geral do Maracanã.  Meu pai era botafoguense doente e fã do Grande Otelo. Cinema, futebol e religião era assunto constante na minha casa.   Não havia televisão, pelo menos em minha casa, quem imperava absoluto era o rádio.   Lembro-me do Zé torcendo pelo seu Vasco ou meu pai pelo Botafogo, xingando, vibrando ou comemorando diante de um rádio grandão que ficava em cima de uma cristaleira. Quando, no mesmo dia, jogavam Botafogo e Vasco o rádio era só do meu pai. O Zé se mandava para a casa de algum amigo vascaíno. Durante estas transmissões minha mãe ralhava o tempo todo com medo deles quebrarem as louças de sua cristaleira.  Eu me empolgava e ia para o quintal brincar com um capotão. Descobri cedo que não tinha a menor habilidade como futebolista.
Nesse clima em que eu vivia, sai numa manhã de casa para o Guido. Durante a caminhada a cidade estava meio esquisita, tudo parado, ruas vazias, parecia sexta feira santa. Mal entramos em sala a professora séria nos impôs o silêncio. Toda a escola estava muda, num silêncio de igreja vazia.  Ficamos sabendo que uma revolução estava em andamento. As conversas eram estranhas para mim, evitar o comunismo, preservação da família, da moral, dos bons costumes e patati patatá. Não entendia bulhufas do que falavam.    Disse que ao sairmos, deveríamos ir para casa rapidamente, ficar nas ruas era perigoso. Enfiou o maior medo em minha cabeça.  Após falar que as aulas estariam suspensas até segunda ordem, dispensou a todos.   Descemos as escadas do Guido numa gritaria danada, um monte de dias sem aula, que maravilha. Em casa a conversa que girava era que tinham derrubado o Jango, este, estava levando o Brasil para o comunismo. Dia seguinte fomos chamados de volta às aulas, frustração geral.
À medida que fui crescendo, rompi as fronteiras em que vivia, passei a conhecer outras faces da cidade. Uma cidade de belas fachadas modernistas, ativos escritores renovando a linguagem, contrastava com uma população barroquinha por fora e por dentro.   Fui compreendendo que, naquele dia lá no Guido, mentiram descaradamente para mim. E como era difícil achar a verdade no meio de tudo aquilo. Aqueles papos de que comunistas comiam criancinhas, mas e a pedofilia rolava solta? Tecelãs, nos seus quatorzes anos, eram assediadas por seus mestres e contramestres tudo na maior surdina.   Aquela conversa de preservar a família por pseudomoralistas, que com suas esposas confessavam e comungavam com o Padre Solindo na Santa Rita, entre uma missa e outra frequentavam suas amantes nas barbas do Padre Antônio no Rosário. 
Naquele dia falaram em democracia mas estavam nos conduzindo a uma ditadura, que levou a abusos de toda a sorte. Adulto, vi pessoas constrangidas ao sair do trabalho, eu também o fui por policiais em suas blitz. Éramos acusados de vadiagem se não tivéssemos uma carteira profissional assinada. Estar desempregado era crime.  Nestas ocasiões, vi mulheres sendo insidiosa e cretinamente apalpadas em revistas policiais. Todos com a raiva entalada na garganta e a boca seca pelo medo. 
Foto de Moana Mayall
     Quem eram os covardes?
  São eles os fantasmas a atormentar-nos até os dias de hoje. Deixaram-nos medos, dores, mortos, frustrações, desaparecidos, e um rastro enorme de mentiras.  
    Aquele foi o pior e o maior primeiro de abril que me pregaram até hoje.         

Nenhum comentário: