O mundo da Mafalda - Silvio Queiroz


                             Não deve ser apenas coincidência que esteja chegando a vez de o mundo ser governado pela geração crescida nos anos 1950 e 1960, quando a Guerra Fria ditava uma cultura em quase tudo bipolar. Tínhamos Estados Unidos e União Soviética, cada qual com sua turma. Tínhamos capital e trabalho, Ocidente e Oriente, Beatles e Rolling Stones, Chico Buarque e Caetano Veloso — sempre para tomar partido de um dos dois. Em outro plano, tínhamos as potências para mandar, no Hemisfério Norte, e os demais países para obedecer, no Hemisfério Sul. A nós, subdesenvolvidos, cabia a parte sombria do noticiário: guerras, guerrilhas, convulsões sociais, tiranias políticas, economias falidas. A eles, o welfare state, a "grande política", a gestão olímpica da economia mundial, aí incluída a ajuda generosa e ocasional aos pobres. Essa hierarquia tão embutida no inconsciente coletivo não escapou ao genial Quino, cartunista argentino que criou a inesquecível Mafalda, menina inquieta, questionadora. Em uma série de tirinhas, ela pôs em prática uma ideia singela para inverter a ordem global: virou de cabeça para baixo o pequeno globo de seu quarto, saída instantânea e criativa para o subdesenvolvimento. Passado meio século, hoje é o Norte que põe o mundo em crise e pede socorro. O Sul segura o crescimento e passa carão aos que ontem ditavam normas de boa conduta financeira. O Brasil, de devedor contumaz, passou a credor do FMI. A explosão de violência em Londres e outras grandes cidades inglesas, nos últimos dias, é talvez um sinal ainda mais eloquente de que o mundo, o mundo real, parece disposto a girar na direção imaginada por Mafalda. Barack Obama não deve ter conhecido as tirinhas de Quino, embora tenha tido seus flertes com a contracultura. Dilma Rousseff, ao contrário, com certeza deve ter encontrado nelas algum refúgio, num tempo em que a situação política do país convidava a calar-se ou rebelar-se, com raros momentos para singeleza. Mas é curioso pensar que o desafio de enxergar o globo por outra perspectiva, em que Norte e Sul não são mais "de cima" e "de baixo", se coloque para gente que era jovem quando o sonho era levar a imaginação ao poder. 

Publicado no Correio Braziliense - 11/08/2011
 

Nenhum comentário: